Assucena fala sobre a paixão pela língua portuguesa em sua coluna semanal da Vogue
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Vocalista da banda As Bahias e a Cozinha Mineira relembra como seu tio influenciou sua relação com o nosso idioma
Em seu último artigo em sua coluna semanal do portal Vogue Brasil, a vocalista do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira, Assucena, abriu o coração sobre sua paixão pela língua portuguesa, destacando a importância que teve seu tio Esechias Araújo Lima em sua relação com o nosso idioma. Ao longo do artigo, que praticamente constitui uma crônica narrativa da própria história da cantora, Assucena passeia por sua infância, juventude e tempos mais recentes, pontuando a cada passagem a influência transformadora das ações de Esechias. Fica clara a admiração da artista da música pelo artista língua, o que torna o texto ainda mais cativante e interessante. Confira:
“Eu sempre zelei por deixar acesa a chama da paixão que sentia pela língua portuguesa. Quando adolescente, tentei ouvir, algumas vezes, a sonoridade de minha fala nativa, de modo a simular uma escuta primitiva. Numa dessas, espreitei o diálogo de um casal, como uma estrangeira que não compreende, mas contempla e aprecia a musicalidade do idioma de outras paragens com o êxtase de quem desbrava e descobre. Evidentemente, as tentativas foram malogradas, pois a consciência do entendimento não me permitiu tamanho distanciamento de mim mesma. É que a língua já me constitui enquanto um ser social no mundo, quase como uma coisa só, eu e ela. Sou da trupe dos humanos, porque penso com a palavra, e nesse caso penso com a palavra em português. Me confortava, porém, assumir meu real lugar de estrangeira, por ao menos contemplar a cadência musical e provocante do espanhol, sua irmã ibérica. Mas hoje percebo que essa paixão pela letra fora acendida por encontros no percurso e pela sorte de ter entre meu círculo familiar, um amante, e, como não bastasse ser amante, é também um leal guardião da beleza da última flor do Lácio.
Me impressionava e ainda me impressiona a habilidade com que meu tio, Esechias Araújo Lima, manipula todas as repartições que organizam seu idioma. Eu ficava embasbacada com seu domínio morfossintático e sua análise acurada de qualquer que fosse o discurso ou texto. A mim me parecia que nada lhe passava incólume. E não passa. Não foram poucas as vezes que ele corrigira os presunçosos erros dos acadêmicos, mesmo tendo por titularidade escolar apenas o ensino médio completo. Mas o que mais me impressionava, mesmo, era o esmero com que ele cuidava de cada palavra do vernáculo. Ora, para condecorar tamanha lealdade e afeto, a língua portuguesa lhe conferia seus altos ofícios, não lhe restava outro destino senão ser poeta, dramaturgo e escritor.
Eu me sentia traída pela minha própria atenção. Como não havia percebido antes, uma publicação tão emblemática de tio Esechias? É que a maturidade é feita de tempos e espaços, ela é quem descortina com paciência o que sempre pareceu estar diante de nosso cenho. Ao abrir o livro, logo na orelha estava ostentado um texto da autora de ‘O Quinze‘, a grande Rachel de Queiroz: “Não sou juiz de poesia – jamais ousei – mas juiz de matéria sertaneja, isso eu sou! Poucas vezes encontrei, fora de Ariano Suasssuna e João Cabral, uma força da terra tão viva e violenta como nesse caderno de versos de vocês, nesse Auto da Gamela…” Era um convite a mergulhar naquele livro que hoje me é exemplo para sentimento, beleza e técnica.
‘Há, no céu desta terra,
um doce mistério de estrelas suadas…
Há, na terra torrada,
lampejos de chamas incolores:
é o sol a tremer labaredas e sulinas.
Há, nas grimpas das serras,
luares paridos em prata.
Há, nas mãos da aparadeira,
um choro nascido à luz da candeia
Há, nos corpos das donzelas,
um fogo que abrasa varões.
Há, no fundo do alforje,
mortalhas tramadas em teares.
Há, nas cacimbas e caldeirões,
jias mortas e quentes.
Há, no dorso das serras,
animais quietos e indolentes.
Há, no leito dos rios,
caminhos fundos de passagens.
Há, em cada volta de estrada,
rapinas em revoadas
e saudades enterradas…’
Depois daquela ida, não me deixei mais me trair. Minha atenção se redobrara em catalisar o sumo da linguagem, não com o engenho de meu tio, mas com a responsabilidade de quem ausculta. Tive a feliz oportunidade de me tornar sua discípula, de consultá-lo sempre que necessário, de beijar-lhe a fronte e reverenciá-lo por me aceitar de bom grado como aprendiz e como suposta aspirante à guardiã do sagrado vernáculo. Toda língua nativa se constitui sagrada, mesmo em seus limites mais profanos, por integrar a substância da matéria e do espírito de uma sociedade. A busca por manipular os domínios da palavra é a busca por desenvolver o conhecimento de si e do universo no plano do discernimento concreto e intangível. É por isso que canto e escrevo, para materializar esse percurso.